Postado por saudecoletiva em 18/out/2024 -
Veja a carta escrita por Yuri Silva Ferreira de Souza, Coordenador Geral Diretório Acadêmico Barros Terra, que é uma denúncia, convite à reflexão e proposta para uma formação antirracista.
Carta de um Coordenador Geral Negro do Diretório Acadêmico de Medicina da Universidade de Federal Fluminense à Comunidade UFFiana
Neste ano, estive como representante discente dos estudantes de medicina em uma Reunião Ordinária do Colegiado de Unidade da Faculdade de Medicina. Lá, mais uma vez, observei somente pessoas que li como brancas tomando decisões. Não havia nenhuma pessoa negra nesse espaço, além de mim. Eles defendiam seus interesses e tomavam decisões que, principalmente, prejudicavam e dificultavam a vida – já muito difícil – de pessoas negras. Ainda assim, lutei, discuti e tentei conscientizar um grupo que está distante das demandas, necessidades e desafios dos meus pares. Foi duro, não conquistei exatamente o que queria e ainda perdi mais do que esperava. Mas, se não estivesse lá, teria sido muito pior para o meu coletivo. Sai com a cabeça erguida e buscando mais energia, havia muito mais pelo que lutar.
No mesmo dia, cheguei em casa, recebi mensagem de uma querida amiga e companheira de luta. Na mensagem, nitidamente de uma amiga negra procurando um socorro por aquiloambamento e acolhimento, pediu-me que enviasse nomes de pessoas que estudam a saúde da população negra na minha Faculdade de Medicina. Tive um momento de choque. Parei o que estava fazendo e me sentei. Minha mente, da forma
acelerada que funciono, passou por todos os docentes que conheço e não encontrei ninguém. Fiquei frustrado porque é a Instituição que está nas minhas apresentações. É meu crachá, minha credencial e meu passaporte. Porém, não fiquei surpreso, porque de alguma forma eu já sabia disso. Ainda, muito rapidamente, direcionei meus pensamentos para as outras instituições que compõem o meu curso: passei pelo Instituto Biomédico, pelo Instituto de Biologia e não encontrei ninguém. Sabia que não iria encontrar, foi dolorido, mas eu já sabia. Daí então, recorri ao Instituto de Saúde Coletiva (ISC), lugar em que, geralmente, nem sempre, sou acolhido. Repassei os nomes mais de uma vez: têm um professor branco que trabalha com as relações étnico-raciais, elabora e pauta a Saúde Coletiva e a sua branquitude. Mas não era o que eu estava procurando, não era o que
precisávamos. Pensei numa professora negra do ISC que conheci ao longo do curso, apesar de negra e discutir raça, não se direcionou para ser a pessoa que discute saúde da população negra e eu a entendo muito bem. Não havia ninguém, no universo amplo da FacMed, que trabalhasse especificamente com a saúde da população negra.
Isso foi muito contraditório para mim. Estou em um curso de saúde de uma Universidade Pública que deveria ser socialmente referenciada e formar para o Sistema Único de Saúde (SUS), como dizem as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). Formar para o SUS, que é majoritariamente construído e utilizado por pessoas negras. Ainda assim, nenhuma das pessoas envolvidas com a formação dos médicos, que são entendidos como referência para o trabalho em saúde no país, estão se debruçando sobre a pauta mais central, histórica e estruturante da nossa sociedade: a racial. Será mesmo que ninguém percebeu essa contradição? Ou já podemos afirmar que isso é um projeto? Temos um currículo que foi vanguarda no que a academia chama de “questões sociais” e um currículo que há 30 anos atrás foi modelo para desenvolver as DCNs do curso de medicina. Mas, até hoje, não temos nenhum autor negro na nossa ementa. Já é hora de responsabilizar quem
toma as decisões na academia como coniventes com este projeto e darmos início ao processo de transformação.
Ainda no mesmo dia, descobri que estava ocorrendo um evento para discutir sobre o Projeto de Formação Médica para o Brasil organizado pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), fazendo uma reflexão sobre onde estamos e para onde vamos com essa pauta. Ainda que eu já tenha sido e continuo sendo sankofiado no tema, provavelmente um dos poucos estudantes de Medicina que já tiveram a oportunidade de olhar o passado para tentar construir o futuro, não fui convidado. Mesmo no cargo de Coordenador Geral do
DABT, a branquitude manteve seu pacto de promover o silêncio e operou para que o convite não chegasse devidamente até mim. Não fui convidado. Antes silenciado em um nível local e, nessa situação, também em níveis mais ampliados. Mas por conta dos afetos e rede de solidariedade que construí ao longo da minha trajetória no movimento estudantil, consegui me articular para estar presente no segundo e último dia de evento. Encarei e fui com coragem, mesmo na incerteza. Não sabia se poderia entrar no hotel do evento, se seria credenciado ou se minha participação realmente estava garantida. Mas uma das competências que o curso de medicina desenvolveu em mim foi justamente estar em lugares em que não sou bem-vindo e atuar ali.
Durante o evento, tive sensação semelhante à reunião de Colegiado de Unidade, só que em proporções maiores e mais desagradáveis. Eram pessoas brancas de organizações e instituições nacionais e internacionais decidindo sobre o que está sendo e o que será do médico no Brasil, um evento verbalizado como histórico e que estava cometendo o mesmo erro de sempre. Durante o evento, mais uma vez, lutei para pontuar e inserir pautas que acredito essenciais nas questões de raça, classe, gênero e território em todos os espaços que
pude. Lutei e me articulei também para questionar e acrescentar essas questões em todos os grupos que não pude participar.
No evento, tive a coragem de questionar o que não tive forças na reunião de Colegiado: Por quê só haviam pessoas brancas ali? Fui motivado porque não havia surgido o indicador de diversidade no tema direcionado para a criação de critérios para docentes nas escolas médicas. Nenhuma das dezenas de pessoas pontuou que esse indicador resultaria em promover transformação social. Acredito que isso ocorreu pela inexistência de
professores e médicos negros naquele espaço. Assim como sabemos que pessoas negras cuidam com mais atenção e sensibilidade de pessoas negras e que pessoas brancas não têm o mesmo cuidado com pessoas negras, professores negros também podem nos ensinar mais e melhor.
A síntese desta carta se encontra na denúncia de que o curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense não prioriza a saúde da população negra, mesmo após o mito da Democracia racial ter sido revelado e termos a certeza de que as relações étnico-raciais precisam ser observadas cuidadas com atenção no Brasil. Em síntese, esta carta é sobre a experiência de um homem negro em espaços de poder essencialmente brancos. Nela, deixo a denúncia: o curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense não prioriza a saúde da população negra. Caiu o mito da Democracia racial e nesses espaços as pessoas nem perceberam, apesar de nós denunciamos diariamente. Como podem seguir silenciando sobre a centralidade das relações étnico-raciais em tudo o que fazemos no Brasil? Nada escapa, e nós sabemos disso desde muito cedo, enquanto as pessoas brancas trabalham com afinco para que nunca apareça o racismo que violentamente afeta a população negra.
Então, quero possibilitar uma medicina plural, semear e dar fôlego para novas medicinas. Para isso, participei da Oficina para Comissões de Heteroidentificação da UFF e acredito que o caminho para alcançarmos juntos esse objetivo é começarmos a diversificar o perfil de docentes e pesquisadores no curso. Digo isso por conta de um evento que organizei para celebrar a entrada dos novos calouros no curso de medicina que teve um fato inédito para as recepções: uma turma cheia de pessoas negras. Fato tão impressionante que os familiares dos estudantes negros fizeram falas anunciando sua surpresa em ver tantas pessoas negras em um espaço historicamente embranquecido. Foi potente e emocionante ver uma turma diversificada. Porém, isso não aconteceu por acaso, foi fruto da atuação do Coletivo NegreX que participou ativamente da banca de heteroidentificação para graduação neste ano e garantiu a política de cotas. Isso é a prova da eficácia da política quando bem implementada. Ainda assim, penso que pode ser aprimorada e necessita de ajustes para
alterarmos o perfil da pós-graduação e do corpo docente desse curso.
Niterói, 18 de outubro de 2024.
Yuri Silva Ferreira de Souza
Coordenador Geral
Diretório Acadêmico Barros Terra
Gestão Confluência